Na ordem natural da coisas, o festejo Kalunga é o que vem após a época da colheita.
Assim que os sacos enchem os estoques das casas, logo depois que o feijão e o arroz garantem a fatura… as primeiras folias religiosas começam a girar – e junto com elas uma mistura de devoção e diversão de nosso povo acontece:
No mundo Kalunga não tem como separar o sagrado do lúdico, a seriedade do êxtase. Tudo o que reza também dança. Todos que rogam também celebram a alegria da festa. E se por acaso nós, Kalungas, nos consideramos cristãos, então o somos de uma forma diferente do restante, pois temos um cristianismo cheio de nomes e datas oficiais católicas, mas que também carrega vivamente os traços divinos de nossas religiões ancestrais. Da Congada ao Candomblé, da Sexta Feira Santa às Danças Curraleiras, do Pai-Nosso-que-Estás-no-Céu ao benzimento indígena… nada se encaixa em termos fixos, tudo é mistura e contraste, verso e reverso. O mesmo sagrado dos silêncios das matas convive com as festas regadas de dança, forró, promessas e rojões… tudo em um só lugar.
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FOLIAS:
- Folia do Divino roda só de noite, o pôso é de dia, mas a gente roda a noite todinha debaixo da lua. Quando o Santo entra, representado na bandeira de pano, a gente canta, quando ele sai, a gente canta a curralêra. Quando o Santo visita uma casa, moradô tem que abrir a porta para receber ele e oferecer bebida, comida e pôso. Quem fêcha a porta para a folia, fêcha também para o santo (..)
Uma folia é bem maior do que os olhos podem ver. E ela tem seus capítulos. As folias têm a Saída e o Arremate. O Começo, o Meio e o Fim. E podem durar semanas até que se conclua. Nesse meio tempo cada etapa é cumprida por responsáveis diferentes: o Encarregado da folia é quem banca os cavaleiros, o Dono da promessa é quem prepara o arremate (ato final), e as mulheres e ajudantes são quem fazem os banquetes. O cantor é o contratado para a festa depois do arremate, depois da reza, depois de tudo!
Em uma folia, primeiro, os cavaleiros rodam pelo quilombo por dias levando a bandeira do santo e visitando as casas: cantando seus instrumentos de madeira, batucando a caixa de couro cru, rezando, anunciando e riscando viola. Os moradores que recebem o santo recebem também a sua benção. Em cada dia, a folia dorme em uma casa para no outro dia sair cedo e continuar o “Giro”. Quando todo o território é percorrido, quando o santo visita todas as casas, então ele volta para dentro da Capela ou para a casa onde habitava inicialmente. Contudo, antes de voltar a divindade ao seu lar, a folia precisa ser finalizada em suas atividades consagradas: é o chamado Arremate.
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O Arremate é a reza, é a comida, é a festa. Nesta ordem.
Os cavaleiros, à porta da capela, esperam a hora certa de entrar com a Bandeira Do Santo. Antes do Arremate, as rezas têm de ser cumpridas: rezas, novenas, rezas, novenas, muitas rezas, horas a fio e fervor. Línguas antigas, versos complexos, são palavras quase ininteligíveis passadas de geração em geração, rezadas em lamentos e cantos puros guardados sem registro escrito, na memória ancestral.
- Cavaleiro que gira folia não pode trocar a roupa não, tem que usar a mesma até o final, sem lavar. É o certo!
Na ocasião, a capela simples é inteiramente revestida de enfeitos de papel, de doces, as rezadeiras entoam as novenas e o dono da promessa prepara, lá fora, o banquete de graça para todos que estão ali.
Antes de os cavaleiros chegarem com o Santo para o Arremate, seja onde ele for, as mulheres já faziam a sua parte. Nos tachos largos elas cozinham-cozinham-e-cozinham, apoiados nas “Trempas” de pedra, no chão. A “Mantança” da vaca já aconteceu mais cedo a mando de quem cumpre a promessa. A carne foi retalhada na conversa das “Comades”. Os mocotós fervem, as bacias cheias da gordura borbulhando durante a tarde marcam o tempo. A vida se faz no trabalho coletivo, sem horas, sem pressa, no ritmo das tradição. E a tradição não ansiedade, ela leva dias ou quanto tempo precisar.
A carne fresca a gente ferventa no calor das toras de araçá, a paçoca é socada no pilão, o arroz transborda dos tachos espalhados no quintal, e a “Guarioba” é refogada para todos. Mesmo amarga, ela é doce como o riso da união dos parentes e vizinhos.
De noite, depois que o Santo termina sua jornada, depois que a reza é entoada, depois que a Bandeira é beijada e a santidade trazida de volta para repousar em seu altar alegórico, o banquete é servido sem preço, sem paga e sem regra. Todos comem livremente. Servem-se e se alegram.
Ao final de tudo, o forró é preparado na área de varanda da casa do morador, num terraço de palha construído especialmente para a festa. O dono passa jogando água no chão para baixar a poeira da pista de dança. A cachaça sai das bóias de plástico, o vinho barato aparece vendido a centimos de moeda, alguém traz até cerveja. Os sorrisos se abrem, as crianças anseiam frenéticas e correm ao redor do salão de dança, gritando. Tudo está leve, feliz, e começando, apesar de tão próximo do fim … O fim do forró só chega quando o dia chega.
Assim que a primeiro timbre da sanfona “Zoa”, todos encontram a alegria do ritmo. As morenas esperam. Os rapazes é que atuam se deslocando até elas. A mão do rapaz se estica em sinal de pedido para dança. Ela espera o movimento completo do braço antes do acolhimento do gesto.
Diante da mão estendida, um segundo infinitesimal de pausa se faz, sempre, antes do SIM. A pausa secreta, o titubeio no olhar, a dúvida da Mulher, é a ideia formal do Não, materializada na postura da grandeza de uma Deusa perante a avidez do Guerreiro. Ela incorpora o NÃO em potência, num leve ato de seriedade pré meditada, rápido como uma respiração, para logo depois deixar emergir o SIM, num sorriso espontâneo, e aceitar a dança.
Assim, o mesmo ritual se repete, dança após dança, par após par, sem precisar de palavras. Lembrando para que haja sempre respeito, para que haja sempre o espontâneo. Reforçando a lei divina de que os protocolos e a tradição servem apenas para engrandecer a liberdade.
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Quem pede sempre dança, não importa quem, não importa quando. Morena que refuta dança “queima minha mão”. Fica chato. A Beleza dos penteados afros, dos traços, dos lenços, das cores, dos cachos reluzentes. A Beleza dessa força Pan Africana… dança com todos. De alguma forma, a Mulher e a Beleza agora são UM. São entidades divinas capazes de aliviarem, com seu próprio esplendor, os dançarinos de suas dores e chagas da vida dura. Num tipo de misericórdia infinita, a maioria das mulheres concedem alegremente dança a tantos quantos solicitarem.
Não há distinção, não há regras para a alegria da dança.
No respeito impessoal do dançar, jovens, velhos, anciãos e casais ‘trocados” dançam até a exaustão, conjurando este único papel de dançarinos, que por toda a suas vidas desempenharam: quando jovens, quando moços, quando homens, quando noivas, quando mães, quando anciãs. O ser se esvazia de si quando dança. O Dançarino, a Dançarina são personagens imortais nas culturas tradicionais de todos os povos. Juntos são o mesmo UM dançante debaixo das Eras. São imunes ao tempo, são insondáveis aos receios da morte. São a execução de algo maior, antes que a ideia desse algo ou as palavras do pensamento os possa capturar.
Assim como na religião, o mistério da dança é a entrega. Os dançarinos se fundem.
Quando juntos, ao ritmo da música, os que dançam serão sempre a incorporação atemporal dessa energia. Celebrando sob o teto das noites na terra, ao ritmo das Áfricas e dos Cerrados que nos criam e nos zelam. Bailando no estalar das fogueiras e dos compassos madrugada a dentro, até que o raiar do dia nos transforme em cinzas, e a vida seja conjurada tanto na intensidade quanto no silêncio.
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“Rimting-rinting-rinting” vem tinindo o triângulo eletrônico, compassando os ritmos da zabumba, que antes já foi feita de couro da vaca, mas que agora é sintetizada dentro do sampler do teclado chinês.
Exceto nos batizados de crianças, e em outros atos mais tradicionais, o sanfoneiro na festa prefere hoje ser tecladista. Ele mistura o antigo tradicional ao eletro-sofrência-sertanejo. As composições, os hits, são locais, a cena dos compositores é local. A gente come o que planta, a gente dança o que vive.
E num retrospecto, durante a festa, a folia que parecia silenciar-se depois do arremate, volta a vibrar na dança dos pares, antes de terminar por completo. Essa mesma folia que por dez dias passou pelas casas, que andou sob o sol por semanas impregnada no suor das roupas dos cavaleiros, que rezou as novenas e ladainhas na fé dos mais velhos, que beijou a borda da bandeira do santo nas casas e que entrou pela sala de moradores de todos os rincões do quilombo…
Assim é a natureza secreta de todas as folias: nascem, eclodem, partem, celebram, queimam e se acabam. Para no outro ano ressurgirem de novo com a mesma força implacável das estações.
Como se fossem as veias de todo o território, elas percorrem e costuram a sanguinidade de todos os moradores mais distantes. Elas cantam a união sem nome de um povo que sabe estar longe, sabe estar perto. Interligado pelas nossas próprias vidas parentes, pelo secreto de nossos antepassados, pelas nossas solidões e pelos nossos Santos Protetores.
“Forró de arremate de folia é até o raiar do dia.
Quem brinca morre, que não brinca morre também. Tem que brincar”
O próximo ciclo do ano seguinte voltará, e todos se farão presentes na mesma folia. O sagrado é o Processo. É o trabalho. É a comunhão.
A reza e a festa não existem sem o Viver. De tal inteligência que toda presença carrega também consigo a ausência, e todo encontro anuncia também a dispersão. Terminada a festa, na aurora dia raiante, todos se vão.
E quando todos partirem, a Capela (Igreja) cercada dos barracos solitários que abrigam os festeiros durante os vários dias da celebração, estará vazia, quase deserta. Dizem que será então lar de algumas almas que ali vivem solitárias e vagantes.
Até a próxima folia todos estarão em suas terras, trabalhando. Enquanto isso, o santo estará no altar. Enigmático e satisfeito. Talhado em seu corpo sagrado de madeira e vestimentas coloridas. Zelando a promessa de quem se encarregou da celebração no ano seguinte, que virá.
Como tudo sempre vem, como tudo sempre vai, debaixo dos céus …