Representatividade



O povo Kalunga não está delimitado por fronteiras oficiais. E nenhum povo jamais poderia ser. Da mesma  forma como a gramática não pode conter uma língua porque ela é vida, também os mapas nunca poderiam conter as forças de uma tradição, seja ela qual for. Tudo se expande e se transforma no mundo: e exatamente assim é a realidade geográfica Kalunga hoje. Seus descendentes já se espalham por toda a região da chapada dos Veadeiros e arredores, incluindo as cidades de Cavalcante, Teresina de Goiás, Monte Alegre, Arraias e Paranã. São centenas de quilômetros para atravessar este território de quase 319.5 mil hectares

A parte mais tradicional da cultura Kalunga ainda se resume dentro do território demarcado, ao longo do Rio Paranã. Algumas teorias apontam para o fato de que as primeiras aglomerações de descendentes de escravos começaram na divisa entre Monte Alegre e Cavalcante, às margens do Rio Almas e do rio Paranã. A partir desse ponto, as populações foram se expandido para outras regiões.

Em 1989, após séculos e mais décadas de invisibilidade social, tais comunidades Kalunga foram reconhecidas como históricas e tiveram seu território tombado sob o nome de Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, por ação de regulamentação de constituição estadual. O território demarcado hoje engloba quase 39 comunidades, ao mesmo tempo em que deixa de fora muitas outras regiões igualmente tradicionais, que comungam das mesmas tradições.





Ao contrário do que muitos pensam, uma comunidade Kalunga nem sempre teve uma organização de liderança. A maioria dos comunidades se comportaram até hoje como aglomerações auto reguláveis, onde não existe um representante oficial e nem mesmo reuniões para decidir coletivamente.  São irmãos de sangue e história convivendo juntos e dividindo as mesmas tradições. Tendo por elemento unificador de suas vidas as dificuldades de manejar a natureza em busca de sobrevivência em áreas completamente isoladas e distantes das cidades vizinhas. Eis o primeiro documento de comprovação Kalunga: somos todos guerreiros e bravos sobreviventes.

Atualmente, o povo Kalunga conseguiu eleger oficialmente um conselho de representante de cada comunidade, pertencente à associação geral, AQK – Associação Quilombo Kalunga.

Essa mesma individualização que caracteriza as comunidades Kalunga muitas vezes acabou fragilizando a população frente a ameaças externas, em que a união é necessária. Porém, devemos lembrar que foi exatamente essa mesma descentralização de poder que fez um quilombo como o nosso se tornar menos vulnerável aos olhos do invasor se olharmos de outro ponto de vista.

Em outras palavras, basta pensarmos o seguinte: em uma história de africanos fugitivos do cativeiro não se convém criar mega estruturas de organização, de memórias coletivas, de agrupamentos, de fornecimento de informações precisas acerca de famílias e descendências. Pelo contrário, quanto menos centralizados, quanto menos mapeável, mais fácil seria para um povo clandestino passar despercebido aos olhos de elementos colonizadores, aos crivos dos coronéis, da coroa, dos bandeirantes e dos capitães do mato.

Não por menos, talvez,  tenha sido por razões como estas que  o povo Kalunga surgiu e se desenvolveu sem necessariamente apresentar estruturas sistematizadas de organização coletivas semelhantes às que vemos em muitas culturas indígenas. Todos os líderes Kalungas que conhecemos ou lembramos até aqui foram reconhecidos como tal de forma espontânea e em detrimento de suas características pessoais. Neste processo, os líderes Kalunga sempre foram pessoas que adquiriram respeito por conta de sua trajetória pessoal e sabedoria. E sua função sempre foi a de aconselhar e mediar conflitos do dia-a-dia, como é a função dos mais velhos em nossa cultura.

Família Kalunga em 4 gerações. Ao centro o líder Tico, na comunidade Tinguizal, com sua mãe, esposa, filhos e netos

Tempos Recentes

Em tempos recentes, porém, o território Kalunga tem se visto frente a situações de carência de liderança. Isso porque, apesar de divergências internas, um povo tradicional se torna mais capaz empoderar-se de sua autonomia à medida em que consegue se articular frente à ameaças que o mundo externo impõe a ele.

Tanto em questões políticas, geográficas, sociais e simbólicas, a luta recente Kalunga enquanto “povo” oprimido pelos sistemas sociais impostos historicamente no Brasil fez com que novos e natos líderes pudessem surgir dentro do Território. Muitos deles já possuem ensino superior e fazem suas pós graduações, outros são anciãos que coletaram da vida a sabedoria que possuem e das suas ações o respeito que emanam.

Em cada momento da nossa história, cada um desses líderes teve o seu papel definido na capacidade única de acrescentarem soluções que fortalecessem a união e o avanço de nossas populações neste caminho: o caminho de finalmente nos vermos como “um”, em vez de “vários”.




Ao mesmo tempo, algumas comunidades, como a do Engenho II, pioneiramente conseguiram desenvolver sistemas de lideranças representativas, eleitas por voto de maioria, para gerir os recursos e decisões da comunidade. Isso significa que pela primeira vez uma comunidade passou a se enxergar como um coletivo, nomeando-se a si mesmos Kalunga, e tomando todas as suas decisões com base em reuniões coletivas. Gerindo fundo de turismo, projetos de pesquisa e ações comunitárias.

Apesar de não parecer, o avanço de um povo Kalunga em busca do desenvolvimento e empoderamento de sua própria identidade passou por avanços largos e rápidos nos últimos 10 anos. E se por um lado este povo precisou de quase 200 anos para ter as suas terras reconhecidas, foi em menos de 10 anos que eles conseguiram se articular para formar lideranças oficiais, para aprovarem em assembleia geral um Regimento interno que os permite manejar regras e leis dentro do território, de forma autônoma. Hoje a maioria dos povoados já possui seus líderes oficiais, que respondem respectivamente às suas associações locais, que por sua vez estão todas atreladas à “Associação Mãe”, Associação Quilombo Kalunga. Representante geral do território. Ainda no ano de 2020, foi realizado o primeiro encontro de líderes do território Kalunga, reunindo e ao mesmo tempo empossando mais de 56 nomes, como representantes oficiais dos povoados em que vivem.

A história Kalunga se renova de geração em geração. Na foto, artesanato Kalunga produzido na comunidade Engenho II