Um dia até as pedras se encontram

No mundo Kalunga as distâncias são parte da vida. Assim como sempre foram para todo ser humano antes que o advento das tecnologias de transporte mudasse totalmente a noção espacial em nossas sociedades. Carros, celulares, aviões, etc. Quanto mais rápido nos movemos às vezes parece que mais atrasados estamos.

De um jeito tal que para um Kalunga mais rico é o homem que, às vezes, pode viver os “meios” do que aquele que muito rapidamente alcança os seus “fins”. Em um mundo frenético como as das grandes cidades, onde as distâncias quase não podem ser percebidas, também a arte de perceber as transições, os contextos e o trilhar se perdeu. E junto com ela uma imensa sabedoria à respeito das “jornadas” e do “silêncio”.

Há não muitos anos atrás, menos de duas décadas, o território Kalunga era praticamente inacessível por veículos motorizados. As estradas eram inexistentes e ainda que existissem eram tão duras que dificilmente poderiam ser vencidas por qualquer sorte de veículo. Desde o tempos de nossos antepassados o transporte dos quilombos foram sempre os Cavalos, os Burros ou as próprias Panturrilhas. E não seria uma metáfora descabida dizer que nossos pais foram primeiros “Trekkers” do sertão. Conhecendo trilhas e conexões capazes de ligar serras e vales inimagináveis. Sendo capazes de conectarem tudo por trilhas a pé, eles se deslocavam com a sabedoria dos antigos.

Nos relatos de nossos pais e avós são frequentes as histórias de suas mocidades, quando, à procura de serviço nas fazendas vizinhas eles saiam a pé mundo a fora. Viajavam até semanas para alcançarem destinos incertos dentro desse sertão antigo e misterioso. Nesta época, as léguas eram roídas com farinha e nossa alma sabia rimar viagens com dias e noites varados nos “trechos”. Dormindo em matas ou na casa de pequenos fazendeiros pelo caminho. O caminho-o-caminhante-fazia. Sem nada consigo  levar.

Quem corre cansa, mas quem caminha alcança. O conhecimento das coisas é a gente que faz. Andar é necessário, e andando é que se faz conhecer. Andar até que as sola do pé começam a arder,  carregando apenas o bornal  no ombro e tirando as pergatas para andar na pedra. Que a gente só tinha uma, e se estragasse, era difícil recurso para conseguir outra. 

Na tradição dos antigos as mulheres costumavam ficar em casa, cuidando da família, enquanto o homem sempre saía em busca de recurso. Histórias são muitas de pessoas que deixam o lar para voltarem somente dali a alguns meses, ou até semestres. Sem meios de mandar notícias para o quilombo ermo e enredados em trabalhos monumentais de roçadas de pastos ou vaquejadas nas fazendas ao redor, os trabalhadores kalunga ficavam o quanto podiam em suas empreitas para depois voltarem a suas casas munidos de recursos. Somados de ganho qualquer que os desse a chance de comprar manufaturados, ferramentas, calçados e quem sabe até mesmo um vestido novo para a filha, na próxima festa. 

Aqueles que partiam escreviam seus versos de saudade, aqueles que ficavam fiavam suas certezas no costume de confiar no tempo estendido da vida. Esperavam o marido, o filho ou o pai, que por fim, auxiliado pela bondade dos homens e de tantos pelo caminho, sempre retornam são e salvos. O peregrino ao seu lar retorna.

Ainda hoje a mesma tradição se perpetua dentro da nossa população. Mas agora com mais estradas e cada vez mais pessoas com carros nas comunidades, todos os kalungas podem sair para trabalhar em cidades e até mesmo na capital. Mulheres e homens, filhos e filhas são sempre criados na arte sazonal de saírem e voltarem de suas casas periodicamente, por longas investidas, para buscar trabalho fora. Um dia quem sabe, o povo Kalunga poderá deixar de ser mão de obra de baixa renda para as elites que ainda precisam de seus trabalhos nas cidades. Nesse dia, então, teremos nosso próprio valor de troca com nossas produções. A farinha que produzirmos não precisará ser vendida nas cidades, “mascateada”, de porta em porta. Mas sim comprada como produto artesanal, com o seu devido valor de mercado.

 E se por um lado cultura das andanças trouxe histórias duras, por outro, ela deu ao povo Kalunga a sabedoria dos silêncios, a generosidade dos forasteiros e a capacidade inabalável de confiar que devagar-e-sempre é possível ir a qualquer lugar. Em um mundo de viajantes todos somos também anfitriões, pois este que hoje viaja e recebe um abrigo de um estranho também amanhã pode se tornar abrigador e receber o forasteiro, que pela sua porta passa. 

Não por menos, toda viagem é para o Kalunga um aprendizado sobre a humildade de nos percebermos totalmente dependentes uns dos outros. Um copo de água que se recebe, um abrigo que aconchega, para um forasteiro, é tão acalentador como a sabedoria divina. E em cada um de nós essa relação mútua produz a germinação de uma generosidade sem fim para com todos aqueles necessitados que cruzarem os nossos caminhos.

Difícil é, ou quase impossível, que qualquer um passando pela porta de uma casa Kalunga não receba antes oferta de almoço, água, pouso e ou companhia. Difícil é um homem morrer de fome ou “precisão” no sertão sem antes encontrar alguém que lhe sirva do pão e da água fresca do pote. E em todo o mundo nada pode ser mais divino que isso. O acolher é o ato sagrado, seja na índia, na pérsia ou no sertão.

Deus quando visita o mundo vem na forma de andarilho ou menino. Quem não abre a porta para o necessitado nunca passou por precisão. A minha comida é fraca, é simples, mas dá para quem tiver fome. No meu quintal sempre tem uma galinha para matar, sempre tem uma farinha para servir.. Comer bom é quando a gente come até encher.

As jornadas de um viajeiro Kalunga não caberiam nem mesmo nos mais épicos contos de Guimarães Rosa. Se parecem em poesia com os antigos “ponteados” da viola caipira, porque possuem as trovas das curraleiras e a musicalidade dos causos mais antigos contados até aqui.

E tal qual foi dito certa vez, toda história que existe no mundo se resume em duas versões: a do homem que parte e a do homem que chega. A poesia é a jornada. No Kalunga as duas já nascem fundidas na memória da alma. No Sangue. E são apenas uma.

Nas suas odisseias pelos gerais do cerrado goiano, o Kalunga atravessa campos, veredas, brejos, corgos, cada um com seu nome, cada qual com o seu mistério, escondido nas origens dos antigos moradores dali.

 Para chegar no Borocotó, você passa pelo capão, seguindo rumo às Palmera, atravessando pelo fundão até chegar na mangueira,  passando pelo Jatobá, Mato da Onça e saltando a Capivara na altura do Pequizeiro. Não tem perdida, o trieiro é seguido, mas a serra é puxada. Se você sair agora ainda chega antes do Sol entrar.

O viajante não teme o luar, a solidão ou o silêncio. Antes disso, ele faz do céu aberto a sua casa, das pedras a sua mesa de matula, e das sombras dos jatobás ou das praias protegidas pela imensidão das gameleiras a sua área de reclino e descanso. Andando a pé ou montado, para o Kalunga, as léguas são como as estrelas no céu de quem navega em alto mar. Ao longo do caminho brotam as casas dos conhecidos, os rastros dos animais, as margens silenciosas dos rios e outros detalhes já tão conhecidos daquele caminho. Que muda conforme as estações, mas jamais deixa de ser o mesmo.

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A NOTÍCIA

Quem passa vindo de longe traz notícias de onde vem e leva notícias para onde vai. Anunciando o nascimento deste, a morte daquele, narrando as histórias do lado de lá da serra, trazendo notícias de quem anda sumido e levando o recado para quem sempre espera.

– Se você vai para o lado da serra, avisa Adão que manda alguém aqui para pegar o burro dele. Já tem uns dois dias que vi ele passando, na direção do Cercado.

No sertão, a notícia é como a poesia, a fofoca-informação é mecanismo de sobrevivência.  É através da  notícias que a gente sabe quando alguém vai partir, quando outro vai chegar, quando alguém vai parir ou que alguém amanhã vai para a cidade e pode levar esta ou aquela encomenda. A notícia passada adiante é o inverso da mensagem do Smartphone. Sem poder viajar eletromagneticamente via satélite ela chega ao seu destino impregnada dos lugares por onde passou. Ela vem cheia do meio-do-caminho”, cheirando corgos, buritis, grotas de passagem e as flores do pequi no mês de setembro… Com as imperfeições da jornada, ela se transforma, e assim como um fruto é colhido hora hora certa, ela adocica os ouvidos calmos de quem por ela espera. “Não é a chegada, nem a partida , mas sim a travessia”, dizia o escritor, que dá sentido à jornada.

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O universo dos trilhos Kalunga sabe ensinar que o melhor caminho entre dois pontos nem sempre é o mais rápido. E que as limitações, quando impostas ao homem, sempre ajudaram no aprofundamento da alma, forjando a sensibilidade pelo profundo. Gerando o entendimento do processo ante o processado, do fazer ante o feito. Deus sempre fora o Verbo, nunca o substantivo.

Assim como em outras culturas antigas, o peregrino, no universo do quilombo, está mais perto de Deus porque anda despido de si mesmo. É ele, por sua vez, esta figura emblemática que em todos habita sempre. Que chega hoje, parte amanhã, em direção a sua sina.  Carregando consigo o que ninguém pode tirar. Fiando vagarosamente nas teias do silêncio a conexão das estações e dos segredos do tempo..