O feitio da farinha é o feitio da vida, do tempo, das chuvas, do mundo Kalunga.

“ A farinha a gente ralava antes era com pau de angico: ela sai maciiiinha, redonda, mais fácil de comer. Agora a gente rala é no foião de alumínio, é mais rápido, só que rala os toco do dedo da gente. Muié tem que ralar é com o ralo no chão, mas hómi é rala é que as costas do braço. Quem mexe com a torra não pode banhar em seguida, o corpo quente quando molha constipa. Só amanhã para lavar.

Apenas os que plantam na terra sabem que a palavra “Ralar”  vem do ato de transformar o fruto da terra em grânulos. O mesmo “ralar” que separa o milho do cuscuz também separa a mandioca da farinha. No Kalunga, o “Ralo” e o “Pilão” são canais que conectam o homem ao sagrado da natureza. Deus concede o mistério da vida, o fruto da terra, e o Homem processa “ele” em termos “Miúdos”. 

No prato de cada dia, no dia de cada prato, a FARINHA é a base de tudo.

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Se alguém algum dia soubesse quantos tipos de mandioca existem, com certeza saberia também em que tom canta a filarmônica do “Jaó” no entardecer. Em outras palavras, é uma tarefa quase impossível, pois no Kalunga as mandiocas e seus tipos e espécies são filhas de línguas passadas, de gerações que vieram antes de todos. Tais antepassados botaram nas raízes nomes vivos capazes de se reinventarem de geração em geração, de região em região, numa mistura léxica banto-tupi-africana do cerrado: as mandiocas tem tantos nomes e tipos que não se podem contar ao exato.

Não é por menos que a mandioca Kalunga é em nossa cultura parte remanescente do Índio Avá Canoeiro, antigo senhor das terras por aqui. O ralo, a farinha, o espremedor, o forno, até mesmo a taboca-que-faz-o-cabo-da-torra é indígena: tapiti, tapioca, bejú, mapuera… É o índio nas palavras, e que vive no mistério dessa história Kalunga. História que ninguém sabe contar por inteiro.

“Eu não sei de onde veio o Kalunga, quando eu nasci já era tudo assim, os Cumpadi era os índio bravo, caçava com lança de taboca, roubava minha carne no giral e deixava outra caça no lugar no amanhecer do dia. Índio bravo aqui no mato a gente chamava de Cumpadi, sumiram tudo:  tem os cabelo lisiiinho, os ombro largo, anda no mato sem ninguém ver, fica invisível ou vira cupim quando quer”

O feitio da farinha é todo o ano, a mandioca nativa da terra não tem época de dar, é o fruto mais forte da terra: brota na chuva, na seca, no sol ou nas “Águas”. O que importa é saber a hora de tirar a raiz da terra. Saber separar a “Brava” da “Mansa”, a “Doce” da “Amarga. Pois é sempre “um” o tipo que vai para a panela e “outro” o que vai para o ralo. Antes de tudo ambas vão para a discussão dos peritos. Neste “Avalio” do tipo, da espécie, da forma, do descasque, é que a gente sabe de antemão a qualidade da farinha.

E por assim sendo, a farinha Kalunga se faz nas etapas: O Descasque, o Ralo ,a Torra. Todas elas acontecendo até hoje, vivamente, numa tríade santa.

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Quem descasca mandioca também “Proseia”, trabalha falando, fala cantando, fofocas, conselhos, versos, piadas. Durante o descasque o tempo não se conta e a tarde cala o momento sem pressa. O grupo de descascadores é sempre grande e composto de qualquer um que chegar naquele momento: filhos, vizinhos, visitas, forasteiros. Todo mundo trabalha na farinha sem ser convidado, sem ser ordenado. A farinha é espontânea como a vida. Começa quando tem que começar e acaba quando tiver que acabar. Cada ajudante leva o seu quinhão da farinha, como agradecimento. De maneira tal que em todo canto do Kalunga, todos os dias, há uma farinha sendo feita: há um ajudante, há um farinheiro.


O descasque é ligeiro, a faca é que controla a mente, cada qual pega a sua raiz até dar cabo da pilha gigante de tubérculos. Despida, a mandioca é branquinha, a gente sabe. A parte “Puba” tem que cortar e jogar fora. Na gamela (recipiente grande), mergulhada na água, a raiz não “preteja” e logo é lavada. Porque a farinha boa deve ser tão limpa quanto possível.

O ralo é feito de folhas de alumínio furadas a prego e martelo: o famoso “Foião”. Tem mais ou menos 1 metro de altura, largo como uma coxa humana, feito para o encaixe na gente e para o “encarque” da mandioca, que na fricção com as ventosas afiadas do ralo vai virando uma massa branca, molhada. A mesma massa vai sendo depositada na gamela gigante. A posição de ralar é ereta, com as costas “Firmadas”, a feição do ralador é de ataque: “Zap, Chaq, Zap, Chaq”: a mandioca sobe e desce, esfregada, no dorso do ralo, vai diminuindo e diminuindo, se tornando massa, até que em um último suspiro acaba virando um pequeno “toquinho”, ralado devagar por quem tem medo de arrancar o “Tampo” do dedo no ralo afiado e manchar tudo de sangue. 

Há não muito tempo atrás os ralos eram feitos a partir do caule da árvore chamada Angico:  árvore de espinhos protuberantes, gordos e fortes. 

“O Angico é uma árvore tão grandona e com uma folha tão pequenininha… Deus fez ele de dois jeito: o da mata e o do campo, mas por fim é tudo Angico por igual, tudo rala, tudo serve de pau”

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A massa toda pronta, ralada, na Gamela transbordando pelas beiradas é a etapa intermediária até que a farinha chegue ao seu ponto final. A massa é uma coisa molhada. Mas a farinha é seca. Tudo o que é molhado não “Atura” muito tempo num mundo-sem-geladeira. A farinha pronta, seca e torrada pode durar anos, sem perder ou mofar. Portanto, nessa etapa, a massa encharcada deve ser desidratada e depois torrada para poder ser armazenada. O secador da massa é o “Tapiti”, acessório oco em formato de cobra “Sucuri”, comprido e cilíndrico, maior que uma pessoa, trançado na palha da palmeira: oito tranças fazem a malha, que quando úmida, é forte e flexível tal qual verdadeiro “poliuretano do mato”. 

O “Tapiti” “abocanha”a mandioca assim como uma cobra engole a sua presa. Vai sendo preenchido até ficar túrgido e pesado como uma tora de árvore. A massa da mandioca é colocada pela sua boca até preencher todo o espaço e chegar no “gargalo”. Quando nada mais ali cabe, ele então é prensado para baixo visando abrir mais espaço e ser preenchido até o limite total de volume e densidade. Esse ato de “fazer-mais-caber” a gente chama de nome próprio: “Arribar o Tapiti”.

O tubo de palha pesado, recheado de massa, com alças nas extremidades, é pendurado no galho da árvore em uma altura acima do nível da cabeça de um homem. Na parte de baixo, prendemos ele numa forquilha de “Pau” bem grande, apoiada no chão e amarrada no tronco da árvore.  Em cima da forquilha coloca-se pedras pesadas, lapeiros largos, para esticar até o chão o corpo flexível do “Tapiti”. A pressão elástica faz o corpo de palha afinar e comprimir a massa, que jorra água pelo chão depois de ser espremida. A água que escorre do Tapiti é para nós o que chamamos de “Tapioca”, a massa seca no forno é o “Bejú”. Quem troca os termos, é a gente da cidade.

E assim, de quilos em quilos, espremendo a massa da farinha entre a força da palha e das pedras, sem nunca escutar das clássicas de Newton, o Kalunga vai usando a gravidade para secar a quase farinha. Por horas preenchendo o Tapiti e extraindo dele o sumo seco de uma massa antes encharcada. E como dito, não usa para isso ferros ou qualquer tipo de força motor industrializada, mas pura inteligência das eras Sapiens, cujas sabedorias antigas eram sensíveis à matéria prima das matas, dos cipós, das palhas, da observação e da sinapses divinas. Sinapses estas que fizeram do Homem um pioneiro, um “Ente” modelador de mundos.

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A Torra:

A massa pastosa ralada, na etapa da torra, agora será passada ao forno para ganhar a aparência da farinha seca, para perder umidade e poder durar meses sem estragar.

Há algumas gerações atrás, o forno era colhido na natureza: a saber, um “Lapeiro” de pedra no formato de chapa. No caminho para a comunidade, ao longo da estrada dá para ver várias dessas pedras bem finas como “Beijus” sobrepostas umas às outras e formando uma pedra maior, mas que quando vistas de perto a gente percebe que são feitas de camadas. Estas camadas são finas como uma fatia de queijo, achatadas e largas, enigmáticas como a geologia das eras. Dali tiramos a chapa ou senão fazemos os fornos em alumínio de descarte.

Para conseguir um forno de pedra à moda antiga, o Kalunga deve colhê-los das encostas pedregosas do cerrado, e carregá-lo sem quebrar até a casa de torra. Lá ele forja um suporte de barro para a “chapa” de pedra se elevar do chão. No vão entre a pedra e o chão faz-se um fogo alto, que esquenta a pedra lisa e deixa a superfície ideal para torrar a farinha.

A ferramenta de torra é como um pequeno rodo, mas feito de taboca. Leve e muito comprido, feito para chegar em qualquer ponto da circunferência da chapa. Em pé, ereta como um guerreiro, em frente ao forno de pedra, a mulher Kalunga permanece no trabalho de remexer a farinha em um movimento “vai-e-vem”, raspando a massa para lá-para cá, sem cessar. Assim, em uma dança fluida entre Mulher e Elementos, a farinha percorre cadenciadamente as encostas do forno, sendo levada daqui, puxada para ali… Vai timbrando o calor da fornalha com graça, passando na brasa, dourando, sem nunca queimar-se.

A Farinha não pode ficar parada, a menos que você queria deixá-la queimar. O ponto final de torra da farinha é um segredo acessado apenas por quem tem a sensibilidade para percebê-lo. É um ponto preciso que oscila entre o branco e o dourado, entre o assado e o doce, entre perfeito e imperfeito.Quando ele parece ter sido alcançado, a mulher experimenta o grão na  ponta língua. Quando o ponto chegou “ a farinha estala na boca”, dizem.


A massa, agora torrada, é passada na peneira, refinada: a farinha de qualidade é a única que se come no Kalunga. Farinha ruim ninguém aceita comprar, ninguém aceita vender. O artesão da farinha tem que ter zelo, o produto final deve ser “Farinha Bonita”, “Farinha-Alvinha que nem açúcar”, “ Farinha Fininha” ou que “Dissolve na boca”. 

O verdadeiro “Farinheiro Kalunga” é um amálgama Marido e Mulher: este sabe da terra e da força, aquele sabe da torra e das texturas. Ambos trabalham juntos. De forma que o prestígio de uma boa farinha significa o prestígio de uma boa família.  Farinha de qualidade é vendida longe, município a fora. Ou então ela é guardada nas “Quartas” de sacos pesados, no fundo da cozinha.  Se um visitante chega na hora da “fazeção”, ganha um “Litro” de farinha para levar para casa como presente, e ainda leva um outro “extra” para entregar a este ou aquele chegado, que lá de longe a gente agrada com oferenda e lembrança.

A farinha tradicional, quem sabe, é o exemplo de que a generosidade é uma medida expansiva: aumenta quanto mais alguém divide. Quem colhe sempre presenteia, quem rala sempre recebe ajuda. A  farinha perfeita e já armazenada é o orgulho da vida, o começo e o meio de tudo. Onde ela existe todo o restante advém. Ela está em todos os lugares no Kalunga, em todos os sangues, em todas as estações, em todas as festas, nascimentos ou velórios. A farinha vive em todas as rotas, nas roças, nas novas ou nas velhas histórias. Compõe o prato no doce, no salgado, no “cozido” ou no “passado”. Ei-la entre nós: a Farinha.

Que não nos falte jamais o fruto bravo da terra. Este que das raízes do “Manivo- Mandioca” sai sujo de terra, escondido, para depois ser lavrado a trabalho, suor e fogo. Para depois ser polido a muque e segredo, até tornar-se o grão branco da vida Kalunga.