O PLANTAR – O COLHER

Em uma cultura tradicional o “fazer” e o “ser” se fundem em uma só identidade. 

Ser Kalunga é viver Kalunga. É ser portador de toda a sabedoria prática sobre como se relacionar com um mundo selvagem.

Antes das primeiras chuvas nós Kalungas plantamos. E mais do que a dedicação  a algo, nos tornamos esse algo. O plantio é uma fase do ser Kalunga, ele não é uma mera atividade, ele é uma parte do que somos.

Nossas roças ficam longe de casa. A terra fértil só existe longe do quintal, escondida entre boqueirões de serras em baixadas e “Candurus”, nos veios férteis de riachos que descem dos altos dos morros lá longe. A vida é para os fortes, e se alguém quer plantar então deve se mudar para roça por alguns meses até terminar a atividade.


Uma roça começa antes mesmo dela se chamar roça: o mato bravo deve ser desbastado ano a ano, queimado até os tocos, a terra ferve no fogo, a fertilidade é gerada quando o capim quente morre sobre a terra. Meses de foice, semanas de silêncio, dias de suor…. longe de casa, os trabalhadores dormem nos “barracos” de palha construídos perto das roças: cada um tem o seu, cada seu tem o “um” que ali fica trabalhando. Enquanto a roça não termina, eles não terminam.  A família toda num barraco, o fogão no chão, as paredes abertas.

Na madrugada a lua cheia vem visitar.


A terra pronta ganha a semente do milho, do arroz, do gergelim, do feijão, do guandu, da abóbora, da batata doce e da vitamina (espécie de batata). O plantio e a colheita são manuais.

Não levará muito tempo para que as primeiras chuvas venham. E dali em diante um mundo inteiro de processos se abrirá até que a colheita esteja ganha. Cada fruta, cada grão tem a sua “manha”, cada um tem a sua “manhã”. Alguns precisam de anos para crescer, outros  só de alguns meses. As abóboras alastram pela terra escura, o arroz sobe dourado da terra enquanto o milho e o gergelim se lançam para cima, pontiagudos. Cada um demanda o seu cuidado e a sua ciência para serem trabalhados.

É na época do “embarrigamento” do arroz, do “embonecar” do milho que os periquitos chegam. “gréin, grinch, quin” eles barulham sem parar. O pássaro preto vem atrás, aos bandos. A época da “vigia” é feita nos estilingues, tacando pedras nos bandos de maritacas que disputam os grãos recém brotados na plantação. Quem não vigia perde tudo..

 Periquito é um bicho esquisito, ele carrega cacho inteiro na boca, joga no chão vai lá e pega outro, mastiga e joga no chão. Assim vai, até acabar com tudo. Vái dibuiá milho para lá, cambada. Grita o vigia. Xooow!

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E assim é pedra que voa, é ave que foge, é semana que passa, na vigília… até que entra a colheita, até  que chegam os sacos linhados pesados e cheios. E junto com eles os ombros que levam os grãos colhidos de um canto para o outro: grãos cascudos, sementes duras ainda, saídas da terra.

Entre o colher e o comer há ainda o trabalho no pilão.

 Ninguém come nada com casca. Arroz branquinho pronto é só na prateleira do mercado. Aqui para comer, tem que socar no pilão, tirar a casca, soprar no quibano.

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A natureza é dura, mas generosa. A sua multiplicação rende mais que os parâmetros do mercado: para cada quilo plantado, sacos são colhidos.

O colher/plantar é o namoro com a terra, é o emprenhar da vida – com intenção. 

Quando eu planto eu afago, faço carinho, falo a língua da terra. 

Quando um Kalunga colhe ele anuncia a vida, o novo ano que chega e tudo aquilo que ainda ainda vai vir junto com a vida: as festas, os feriados, os batizados, os casamentos, os velórios, as visitas, as chegadas e as partidas…

Tudo vem das colheitas. Ano após ano, sem nunca cessar ou decair. Somente a vida pode gerar a vida.

A colheita se faz.

Um povo se proclama.

Liberdade é a força de executar o que somos nesse mundo.